Uma Comunidade de Aprendizagem

COMUNIDADE: AS CARACTERISTICAS E VALORES DE UMA COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM

Francisco Alves da Costa Sobrinho


Uma comunidade se forma a partir de necessidades comuns, de interesses a serem satisfeitos, de metas a serem alcançadas, de objetivos a serem estabelecidos e cumpridos, com base no estabelecimento e de cumprimento de códigos expressos através de diversas manifestações e formas de linguagem.


Para existir como tal, uma comunidade materializa-se baseada em alguns pressupostos, os quais dizem respeito, normalmente, a questões que fundamentam e justificam o interesse ‘comunal’, como pode ser o caso da necessidade de moradia, local de trabalho e/ou emprego, estudos, esportes, cultura e lazer etc.


Uma comunidade se faz à base de muitas exigências cotidianas e pressupõe conhecer as formas de defesa, de ataque, onde encontrar apoios, como se estabelecer e conviver melhor, sobreviver e ser capaz da criação de laços pessoais, etc., enfim, que se deva passar por todo um período de adaptação e aprendizado, caminhando pelo novo e pelo desconhecido (em que podem ocorrer manifestações de medo, de insegurança, e sentimentos de solidão, saudade, decepção, indo e vindo nos momentos de maior ou menor tensão).

Assim, a iniciativa de formação e funcionamento de uma Comunidade de Aprendizagem, pressupõe todo um processo de sensibilização e de identificação, realizado através de mobilização e conscientização dos seus integrantes, no sentido de buscar o seu ordenamento e a estruturação das ações a serem desenvolvidas, considerando sua natureza, qualidade e legitimidade; entendendo-se que a Comunidade de Aprendizagem estrutura-se como um projeto educativo e cultural próprio, o qual deverá servir, conforme a educadora Rosa Maria Torres, “para educar a si própria, suas crianças, jovens e adultos, graças a um esforço endógeno, cooperativo e solidário baseado em um diagnóstico não apenas de suas carências, mas, sobretudo, de suas forças para superar essas carências.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

PESQUISA COLABORATIVA: uma proposição de pesquisa integradora



Francisco Canindé da Silva
Profa. Dra. Rosa Aparecida Pinheiro
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

O pensar a problemática sobre a formação de educadores para jovens e adultos, especificamente para os programas de alfabetização, nos levou a discutir a prática reflexiva na organização curricular da ação pedagógica de uma equipe dessa formação. Esse campo de atuação apresenta uma forte dimensão valorativa concernente às questões sociais, éticas e políticas, exigindo um diálogo com os alfabetizadores, portadores de saberes adquiridos pelas experiências vivenciadas em suas comunidades.
Na elaboração de nossa tese de doutoramento, ao pensarmos na perspectiva da análise de uma prática formativa em um Programa de alfabetização, compreendemos essa prática educativa compartilhando da concepção de Boutinet (2002), que a preconiza como um espaço de imaginação criativa. Em nossa proposição formativa, partimos da consideração da memória na constituição da história pessoal e na elaboração de saberes em que o projeto é um vínculo dinâmico entre as ações intencionalmente formuladas e a serem concretizadas. Em nossa pesquisa, as ações formativas possibilitavam o engajamento, enquanto participação político-social, do indivíduo no incremento de sua capacidade para tomar decisões e se responsabilizar por suas consequências e mudanças, que afetam a ele e ao seu meio.
Nosso compromisso como educadora pressupõe a formação de uma atitude de investigação e de problematização das relações estabelecidas com a comunidade nos espaços educativos que dela fazem parte. Ao pensarmos a constituição de saberes na formação de alfabetizadores, entendemos que os espaços institucionais devem incentivar a capacidade reflexiva e criadora na reelaboração dos saberes experienciais no espaço acadêmico. Entendemos, como Morin (1999), que a instituição universitária é um espaço de memorização, conservação e integração de saberes, ao mesmo tempo em que gera novas idéias e valores.
Essa mobilidade está imersa em um paradigma cultural caracterizado por Alarcão (2001) como uma racionalidade crítica e emancipatória dos sujeitos e das instituições que os constituem e são por eles constituídas, tendo como fundamentais os saberes imersos nas relações cotidianas que emergem das expressões culturais e se transformam em práticas educativas. Nessa óptica, o presente trabalho apresenta a organização metodológica de minha tese de doutoramento ‘FORMAÇÃO DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NO PROGRAMA GERAÇÃO CIDADÃ: relação entre saberes na proposição curricular’ / 2007 – UFRN.
No grupo participante desse estudo, constituído por oito educadoras, a proposta pedagógica foi construída sobre a formação imbricada na prática, advinda das experiências vivenciadas por suas componentes. A trajetória pessoal de cada formadora se relacionou às suas escolhas e formas de atuação em nosso Programa de alfabetização e, embora ocorressem individualmente, se constituíram em um coletivo no compartilhamento das decisões de planejamento das atividades. Acreditamos que o modo de vivenciarmos e encararmos nosso percurso pessoal, em face de situações concretas, representa categorias fundamentais para nosso desenvolvimento profissional, como enfatiza Nóvoa (1995). Na elaboração do perfil das formadoras, nos utilizamos de informações sobre suas características pessoais, elaboradas por elas mesmas, sobre sua trajetória de formação acadêmica, experiências de formação vivenciadas e expectativas presentes no período da investigação.
Esse perfil das formadoras, caracterizado por suas trajetórias no trabalho, implica na reapropriação das experiências vivenciadas em uma tessitura de relação interpessoal na qual os saberes particulares se presentificaram na interação que estabelecemos com o coletivo. Com características comuns, as formadoras apresentaram a graduação em Pedagogia (menos uma da área de saúde), a faixa etária de 25 a 40 anos e, a partir de suas vivências significativas, manifestaram em sua trajetória o propósito comum de trabalhar com educação de jovens e adultos. E aquilo que poderia ter sido motivado apenas por questões circunstanciais, se transformou em uma escolha no campo de atuação e em uma postura de qualificação permanente e produção nessa área de estudos.

Todas as formadoras tinham experiência nesse campo educativo e a maioria das componentes do grupo iniciou seu trabalho no Programa GerAção Cidadã como alfabetizadoras, seguindo como coordenadoras pedagógicas e, posteriormente, compondo a equipe de formação dos alfabetizadores. Além de terem podido conhecer todas as etapas do trabalho educacional desse Programa, desenvolveram também atividades de coordenação pedagógica e formação em outros programas de alfabetização, bem como de formação continuada em cursos de atualização e especialização de professores da EJA do sistema público de ensino do RN.
As experiências acumuladas ofereceram uma referência do campo da pesquisa focada na organização curricular dos encontros de formação como campo empírico, no qual os saberes acadêmicos se reorganizaram na prática educativa. Para analisar esses relatos, utilizamos como fundamentos metodológicos os princípios da pesquisa colaborativa, que se constitui como modalidade da pesquisa qualitativa na reflexão sobre a elaboração de uma práxis na EJA que contribua para as mudanças nas relações educativas. As opções teórico-metodológicas, quanto aos pressupostos, procedimentos e ações na pesquisa foram organizadas em função dos aspectos sociais e culturais que contextualizaram nosso campo de trabalho.
Entendendo que nossa ação coletiva é construída em ações individuais, na interação de projetos que buscam a ação comum, abordamos dialeticamente nossa investigação para, como argüi Ianni (1986), estabelecermos uma visão crítica e uma reflexão permanente sobre o conhecimento da realidade social. Esse autor se contrapõe à explicação isolada de como se constitui o indivíduo, reforçando a visão integrativa da realidade social historicamente produzida. Ao construirmos nosso método de investigação e análise, partimos do referencial de que as pesquisas na área social, fundamentadas na metodologia qualitativa, possibilitam procedimentos diferenciados, de acordo com questões específicas a cada contexto, visando responder à multiplicidade de formas na convivência social e possibilitar a transferibilidade dos resultados da investigação para outras situações.

                Entendemos que as etapas de elaboração desse processo devem ser contínuas, como coloca Mills (1986), e as tomamos como base para a reorganização de procedimentos que nos permitam conhecer as particularidades das situações da formação pedagógica voltada para a alfabetização de jovens e adultos. Nessa concepção, não há dicotomia entre escolhas pessoais e opções teóricas na formação do pesquisador que rearticula, na experiência, procedimentos que fundamentam o trabalho de investigação. Assim, nos guiamos pela sistematização do trabalho na complementaridade dos princípios e procedimentos da pesquisa colaborativa, com ênfase nas sessões reflexivas, associada à pesquisa documental e às entrevistas semi-estruturadas. A análise efetivada foi possível pela explicitação dos pressupostos teóricos, assumidos pelo conhecimento de nosso campo empírico e das participantes na pesquisa, no encaminhamento junto ao coletivo de formação investigado.
            Na constituição de nosso objeto de estudo, a partir de ações individuais ou coletivas e através de um processo interpretativo, analisamos as ações conjuntas como articulação de atos individuais e não de seu somatório. Referenciamos-nos em Geertz (2001) que ressalta a importância de conhecermos o ethos e entendermos os significados estabelecidos pela comunidade ou grupo social com o qual nos relacionamos, para procedermos a uma investigação que considere a multiplicidade dos fatores envolvidos. Nesse contexto, utilizamos a concepção de professores-pesquisadores como base para nossas elaborações e enfatizamos o entrosamento das formadoras-colaboradoras pela colaboração e negociação que caracterizaram nossa investigação no campo da Pesquisa-ação Colaborativa, como a conceituação que utilizamos.

      Embora o surgimento dessa modalidade de pesquisa tenha tido como cenário a instituição escolar, entendemos ser possível sua utilização em nosso campo investigativo no Programa GerAção Cidadã. De fato, a pesquisa colaborativa se respalda num ideário coletivo, ressaltando a participação e a inovação na perspectiva da formação do educador como questões-chave para que o formador de alfabetizadores entenda a complexidade das relações educacionais e sociais. A pesquisa colaborativa é uma modalidade fundamentada na participação do colaborador e na reflexão como ato coletivo, o que possibilita a investigação-ação na inserção dos participantes em situações sócio-educativas em que o autoconhecimento reflexivo passa a ser uma categoria epistemológica, como enfatiza Kemmis (1987).

Na pesquisa colaborativa, a partir da vinculação de cada sujeito autônomo nos elementos comuns ao grupo, temos uma ação interativa e coletiva em processo de ruptura e reelaboração. Em nosso grupo, a investigação colaborativa teve como premissa fundamental o movimento de instigar a capacidade de auto-reflexão e desenvolvimento educativo individual e do grupo, possibilitando igual espaço de negociação de responsabilidades e enfatizando que o interesse particular contribui para o geral, criando-se a consciência da participação individual como indispensável para o coletivo. 
Tal participação exigiu a negociação sobre tempos de trabalho e trocas de saberes o que permitiu a reelaboração de posições, conceitos e atitudes, desde a seleção e organização de pontos para discussão, até a elaboração de propostas de formação. Como enfatiza Freire (2005, p. 29), a pesquisa e o ensino estão imbricados na impossibilidade da existência de um sem o outro, pois “[...] faz parte da prática da natureza docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador”. Por analogia, transpomos esse princípio da prática docente para nossa proposição de formação, em que o formador é, em sua raiz, um pesquisador.

Sessões reflexivas


Em nosso grupo colaborador, as sessões reflexivas ocorreram em reuniões semanais e foram, no início, basicamente para a realização de planejamento e discussão das atividades do grupo colaborador. Após a etapa de constituição da equipe, com a discussão do que é Pesquisa Colaborativa, as relações de hierarquia no grupo, a disponibilidade de participação de cada colaboradora e o estabelecimento de princípios comuns de ação, consideramos que havíamos iniciado as reuniões reflexivas como um espaço de formação coletiva.   

O que eu percebo é que há uma linha de formação muito parecida dentro do grupo [...] então as coisas vão se completando e as próprias necessidades vão surgindo [...] a formação se dá nesse momento que podemos estar associando as áreas de conhecimento com essas práticas. Eu acho que há uma prática colaborativa, o grupo é maduro nesse sentido [...] inclusive [...] o tempo de trabalho junto tem a ver [...] porque o grupo não nasce colaborativo, ele vai se constituindo [...] é muito lento, envolve mudanças de atitude e da própria pessoa em alguns sentidos [...] tem que incorporar na sua própria vida [...] o tempo vai estar trabalhando para a gente se tornar esse grupo colaborativo. (formadora Begônia)

Percebemos que, para essa educadora, a formação estava entrelaçada às relações que se criaram no grupo devido ao tempo de trabalho em conjunto, embora esse fator isolado não possibilitasse as relações de colaboração. Entendemos que o entrosamento construído a partir da reflexão de nossas ações, se apresentou como o elemento de maior potencial para a constituição desse grupo colaborativo. A elaboração de uma linha de formação comum, com a discussão de princípios e procedimentos necessários a uma ação formativa corroborou para o aprimoramento das relações entre as participantes desse grupo. Utilizamos, desde essas discussões preliminares, o tempo das reuniões para a constituição de um grupo que fosse efetivamente colaborador, trabalhando na busca do consenso sobre conceitos básicos, como formação de educadores e organização curricular para a EJA, tendo como parâmetro as experiências que vivenciamos.
Em decorrência das falas das formadoras nas entrevistas [1], discutimos as particularidades que cercavam a constituição do grupo colaborador, pois contávamos com a participação de duas professoras e suas ex-alunas. Estas, mesmo não ocupando mais essas funções, traziam relações de poder difíceis de serem superadas. Havia a questão da hierarquia, presente mesmo que de forma não explícita. Por isso, em nosso debate tivemos a preocupação de não permitir que esse tipo de relação interferisse no processo colaborativo. Entendemos a necessidade de estabelecermos, em nossa atuação no grupo formador, uma relação diferenciada da nossa função de coordenadora dos programas, ou de ex-professora das demais participantes. No grupo colaborador todas éramos pesquisadoras e formadoras, pois estudávamos e investigávamos conjuntamente e, embora pudesse existir uma hierarquia própria à nossa relação institucional, as bases das relações no grupo colaborador eram o respeito e a interação. As falas das formadoras, envolvidas nesse processo, corroboram essa percepção. 

Tem essa hierarquia extremamente democrática, e é difícil suplantar porque eu também vivo isso com as articuladoras [...] acho que são papéis, acho que não é nem hierarquia, todos nós desenvolvemos um papel diferente [...] que é uma coisa perigosa, você pode até pensar em não ter [...] você incorpora, pode não trazer explicitamente, mas sutilmente de alguma forma, a gente traz uma energia, tem que estar alerta, estar ligado, porque senão você se coloca em um nível de superioridade, que sabe tudo e não tem a coerência, que é o mais difícil. (formadora Margarida)

Como complemento a esse debate, a formadora Dália tem sua fala na mesma perspectiva:

[...] na hierarquia [...] entender o que é colaboração [...] ter bem claro que é uma ação mais significativa [...] e os limites  [...] nessa construção de saberes que o grupo de formação está se propondo a realizar [...]  ao formar o grupo colaborador de uma forma mais sistemática, se pensa uma forma desse grupo se comprometer [...] porque nós somos convidados a participar, a opção é outra coisa.  (formadora Dália)

Essas falas trazem uma questão interessante quanto à ação sistematizada na relação de colaboração e na opção que cada formadora realizou ao se comprometer com o trabalho do grupo. Desde então, modificou-se significativamente a forma de relacionamento do grupo, pois, antes de estabelecermos uma relação de colaboração, nossa atuação era exercida também em um coletivo, mas não com o caráter de sistematização e comprometimento adquirido no grupo colaborador.
A fala de Dália aponta o compromisso formalizado no grupo, a partir de uma adesão para a elaboração de uma proposição educativa conjunta. Como houve uma discussão articulada sobre a opção de participar, ou não, do grupo colaborador, estabelecemos um princípio comum que nos levou a produzir proposições em nosso trabalho, nas relações já constituídas entre as formadoras como detentoras de um saber e uma práxis que lhes davam segurança e autonomia. Essa clareza de nossa função, enquanto investigadora e participante da coordenação, nos levou a termos na discussão do grupo a mesma posição das demais participantes. Sabíamos que tínhamos mais tempo de trabalho na área, e, consequentemente, mais experiência. Isso nos autorizava a interferir com mais freqüência nos debates, mas sabíamos que não deveríamos fazê-lo, tendo em vista que tal atitude poderia ser prejudicial ao desenvolvimento da pesquisa.
A colaboradora Dália aponta, ainda, que, embora tivéssemos uma prática de elaboração conjunta, essa não se dava de forma sistematizada, quando não dissociávamos os papéis sociais (Berger e Luckmann, 1985) desempenhados fora do espaço do grupo colaborador. Se as relações internas ao grupo poderiam caracterizar ações hierárquicas, a fala da colaboradora Margarida levanta uma questão interessante, que diz respeito à necessidade de explicitação dessa hierarquia, presente nos grupos e equipes de trabalho, pois essa relação só pode ser modificada quando reconhecida.
Entendemos que esse aspecto é um fator digno de consideração quando se opta pelo trabalho colaborativo, pois este pressupõe que todos os integrantes estejam em um mesmo patamar de participação, a fim de exporem em condição de igualdade e tranqüilidade suas concepções e proposições na consideração do conflito e da contradição como fatores de entrosamento no grupo.

[...] é difícil às vezes trabalhar em grupo, não é difícil de uma maneira desconcertante, mas temos que procurar estratégias para se fazer ouvir, ou se calar mais, eu acho até que eu estou falando mais desde o ano passado [...] às vezes é difícil expressar algumas idéias [...] é difícil esse caminho de tentar buscar, aproximar as linguagens [...] aí vem uma questão de hierarquia [...] tentar quebrar, amenizar essa hierarquia, porque ela existe.  (formadora Hortência)

Esse depoimento evidencia a necessidade da criação de estratégias para quem quer se situar no grupo, superar a dificuldade de expressar suas posições e criar seu próprio espaço, contrapondo-se à hierarquia existente. Isso é importante mesmo para aquelas pessoas que já têm experiência e formação nesse tipo de atividade. Uma atitude positiva, nesse sentido, seria tentar homogeneizar a linguagem utilizada pelo grupo, criando códigos que facilitassem a compreensão entre as colaboradoras, pois “[...] é somente pela capacidade de se comunicar que os homens podem pensar em comum” (GADAMER, 2002, p. 174), ou seja, a utilização de conceitos comuns torna possível a convivência social e humana.   
Foi importante o estabelecimento desses canais de comunicação para a superação de problemas apontados, inerentes à composição de todo grupo, por vezes, exacerbado pela relação quase cotidiana em que se estabelecem afinidades ou discrepâncias entre as colaboradoras. 

[..] há uma dificuldade de relacionamento no grupo [...] concentra muito em algumas pessoas [...] é como também se houvesse subgrupos dentro do grupo [...] acho legal ter seus grupos, porque ninguém pode ser amigo de todo mundo, o tempo todo, mas de que maneira eu lido com isso [...]  com as ranhuras. (formadora Margarida)

O problema que se coloca é o de como lidar com a questão de mantermos, simultaneamente, nossas preferências de amizade, e não criarmos no grupo colaborador subgrupos ou dissidências. Nosso enfoque estava direcionado a um objetivo comum, na proposta de formação e nas atividades do grupo colaborador, e esse deveria ser o guia para nossa intervenção, em função de cada posicionamento político-filosófico do formador. 
As formas de nossa articulação, enquanto grupo, perpassaram constantemente nossas discussões, no tocante à constituição do grupo de formação, bem como às ações com os alfabetizadores. Os princípios da dialogia e da democracia embasaram nossas decisões, inclusive porque os alfabetizadores têm como referência a forma de nos relacionarmos, que se reflete também nas ligações em suas comunidades. O diálogo é entendido aqui como na concepção de Gadamer (2002), sendo o que deixa marcas, como algo que não havíamos encontrado em nossa experiência de mundo. A transformação acontece pelo diálogo quando deixa em nós alguma coisa que modifica nossos valores e ações, considerando-se o conflito inerente em todas as relações pessoais.
Como todas as participantes do grupo têm formação e produção na área de alfabetização em EJA nessa perspectiva, na organização do grupo colaborador tomamos como base a proposição de Desgagné (1998) que compreende o processo de pesquisa e formação como sendo único. Na elaboração do roteiro de ações, para as sessões reflexivas aglutinamos as propostas de Desgagné (1998) às de outros autores como Magalhães (2003) e Cortelazzo (2000), organizando assim os procedimentos:

  •   Diagnóstico do problema a ser pesquisado – para iniciarmos essa investigação, retomamos os estudos teóricos em áreas básicas que se complementam: a formação de educadores, os fundamentos da Educação de Jovens e Adultos, a organização curricular e os saberes científicos e experienciais. A problemática sobre esse planejamento curricular em alfabetização de jovens e adultos perpassou a reflexão sobre nossa prática educativa nos cursos de formação. As informações já sistematizadas no Programa GerAção Cidadã nos deram uma perspectiva mais concreta sobre as ações educativas, objeto de nossa reflexão conjunta.  
  • Realizamos o levantamento e a organização inicial de informações identificando as participantes do processo como integrantes do nosso grupo reflexivo, o qual participou da organização dos encontros de formação. Discutimos o interesse e a disponibilidade de engajamento na investigação, a partir da nossa proposta inicial de pesquisa.
  • Negociamos com as colaboradoras o tempo disponível para a dedicação ao trabalho, e embora houvesse interesse unânime pelo trabalho por parte das doze participantes do grupo, a disponibilidade de tempo era variável. Decidimos trabalhar com oito formadoras que atendiam ao critério de tempo solicitado, sendo que o grupo colaborador estaria aberto à participação eventual dos demais participantes do Programa GerAção Cidadã.
  • Desenvolvemos as entrevistas semi-estruturadas com as colaboradoras em meses subsequentes, localizando as recorrências e as questões levantadas pela transcrição das falas. Com isso, chegamos a um entendimento sobre as situações vivenciadas a partir de um olhar particular, bem como a construção dos eixos para os debates nas sessões reflexivas.
  • Organizamos o cronograma de atividades com a sistematização de encontros semanais ou eventualmente quinzenais, em que gravamos os debates para a coleta de depoimentos, reflexão e organização de temas para o planejamento das ações das formadoras nos encontros formativos.
  • Elaboramos um roteiro para a discussão das sessões reflexivas, partindo dos temas mais simples para os mais complexos, de acordo com a necessidade de explicitação dos conhecimentos. Nas reuniões com as colaboradoras começamos a debater questões referentes ao planejamento das atividades e à organização curricular do Programa. Com o maior entrosamento do grupo, passamos a discutir sobre nossa ação formativa e nosso papel enquanto sujeitos formadores de educadores em um processo auto-reflexivo de análise.
  • Realizamos vinte e oito sessões reflexivas, em encontros que possibilitaram sessões de auto-reflexão, que se relacionavam com as reflexões coletivas, no tocante aos temas abordados.
  • Através do estabelecimento de regularidades e relações que ensejaram a reflexão e a identificação de elementos, construímos eixos de análise relativos ao nosso objeto de pesquisa. A reflexão sobre nosso processo formativo se fundamentou nos estudos teóricos e nas discussões realizadas no grupo colaborativo.
  • Buscamos obter elementos de transferibilidade que pudessem ser reorganizados em elaboração de outras propostas para educadores de EJA, a partir dos estudos acerca da relação dos saberes no currículo, nas proposições de intervenção, nos encontros de formação e no processo formativo como um todo. 

O desenvolvimento dessas etapas envolveu como, em geral, no trabalho colaborativo, a seguinte composição: competência individual em relação ao trabalho coletivo; objetivos comuns (embora cada participante tivesse objetivos diferenciados de longo prazo); interdependência com o funcionamento eficaz do todo a partir dos valores individuais; investimento de tempo, dedicação e comprometimento; argumentação e reflexão; manutenção permanente de conhecimentos a serem processados em saberes no planejamento contínuo das ações.

[...] cada vez que a gente discute põe em xeque aquilo que a gente faz, no mínimo a gente se compromete com a nossa fala [...] você tá provocando a auto-reflexão no momento da sua fala e tá se comprometendo com o outro que está te ouvindo [...] então isso aí também vai te mobilizar a refletir a sua ação e fazer acontecer de forma diferenciada, isso é um ponto, outra questão é que, ao dizer eu também estou organizando o meu pensamento, estou reelaborando [...] e depois de dizer existe um movimento intenso de reflexão sobre [...] vem um texto que instiga a você fazer uma conexão e mesmo que o texto na discussão saia de foco foi ele quem futucou, foi ele quem instigou, mobilizou a discussão, e uma hora você volta para ele [...] essas discussões acabam nos dando mais centramento. (formadora Margarida)

Ressalta-se, nesse comentário, o sentido da reflexão na ação quanto ao nosso comprometimento, entre as componentes do grupo e a relação com os educadores com quem trabalhamos. Denota-se a importância da fala como canal do comprometimento social e na sistematização de nosso pensamento, juntamente com a exploração de textos teóricos como instigadores de nossas discussões.
                Com base nas discussões sobre os temas selecionados, apoiados pelos textos que refletem a prática educativa em EJA, analisamos as questões debatidas a partir das retomadas periódicas apresentadas. A avaliação do grupo é de que as reuniões apresentaram uma discussão relevante, com elaborações que não ocorreriam às colaboradoras de forma isolada, pois as experiências individuais das formadoras que partem de especificidades regionais e culturais têm como fio condutor comum as formulações e expectativas que se formam no grupo.

[...] eu tenho tido um crescimento intenso, desde que eu cheguei eu pude ser [...] como as meninas agora [...] ser alfabetizadora, depois articuladora e coordenadora, passar por todas as etapas, eu pude me perceber assim, e o meu momento.. a gente percebe nesse distanciamento, pode haver vários erros, mas o foco no que acredita, justifica, explica [...] eu percebo uma reflexão muito grande sobre nossas ações, desde que eu era alfabetizadora em 2001. (formadora Jasmim)

            A constituição do grupo das colaboradoras que traziam experiências como alfabetizadoras, articuladoras, coordenadoras de grupos e formadoras de outros educadores, exigiu desse grupo ações comuns. Essa integração auxiliou o entendimento sobre as ações individuais e coletivas atinentes às teorias de ensino-aprendizagem e a organização curricular. Objetivando discutir, juntamente com as colaboradoras, a importância e a dificuldade da descrição de um processo formativo, elaboramos textos reflexivos com temas diferenciados, abertos à crítica e à reelaboração, e desenvolvidos como culminância das argumentações teóricas. Entendemos que essa ação não é uma atividade individualizante, mas sim uma reflexão crítica no âmbito coletivo, com o exercício individual que se compõe no contexto social.

[...] o texto que eu escrevi sobre a heterogeneidade, quando eu trouxe aqui para refletir  [...] foi me ajudando a entender melhor, a rever onde eu poderia melhorar, poderia avançar [...] e é pelo coletivo, porque embora eu busque individualmente essa formação, é no coletivo que eu cresço, é no coletivo que eu me emancipo. (formadora Hortência)

            O depoimento acima indica que a auto-avaliação no processo da ação formadora contribuiu para a revisão dos atos educativos e superação das práticas individuais excludentes. Compreendemos que o sentido do coletivo, básico a um grupo colaborador, foi apreendido pela equipe através de nossa reflexão conjunta, possibilitando a organização do trabalho conforme o método que selecionamos. A auto-reflexão e a troca realizada no coletivo são pilares do grupo colaborador e o caminho para o crescimento profissional de cada componente, e do grupo de formadoras, como um todo.
            A abordagem teórico-metodológica utilizada nos abriu espaços de reflexões e descobertas em uma práxis na qual a elaboração de uma proposta de ação formativa foi formulada por um sujeito coletivo, isto é, o grupo colaborativo constituído pelas formadoras. Essa ação formativa permitiu ao grupo elaborar um processo reflexivo sobre os saberes constitutivos de um curso de formação. Esses saberes estariam repletos de elementos se articulando nas opções curriculares efetivadas em nossa prática formativa e que apresentamos nos capítulos seguintes.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CORTELAZZO, Iolanda B. de C. – Colaboração, Trabalho em equipe e as Tecnologias de Comunicação: Relações de proximidade em cursos de Pós-Graduação. (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação da USP, SP, 2000.
DESGAGNÉ, Serge – Reflexões sobre o Conceito de Pesquisa Colaborativa.  Tradução-livre: Adir Ferreira. Les Journées du CIRADE. Université du Québec à Montreal, octobre. 1998.
FERREIRA, Ana Cristina – Metacognição e Desenvolvimento Profissional de Professores de Matemática: uma experiência de trabalho colaborativo. (Dissertação de Mestrado).  UNICAMP. Campinas, SP. 2003.
KEMMIS, Stephen – Critical Reflection – Staf development for school improvenient -  Tradução: Ivana Ma. L. M. Ibiapina, Library or Congress /cataloging Philadelphia, Imago Publishing, 1987.
MAGALHÃES, Ma. Cecília C. – Sessões reflexivas como uma ferramenta aos professores para a compreensão crítica das ações de sala de aula – Programa de Estudos Pós-Graduados – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP, 2002
MAGALHÃES, Ma. Cecília C. – A colaboração no Processo de Reflexão Dialógica. Transcrição de palestra por: Ivana Ma. L. M. Ibiapina, UFRN. Junho, 2003.
MORÉS, Andreia e OLIVEIRA, Valeska F. – Os saberes Docentes e as significações no processo de formação. Pós-Graduação – Universidade Federal de Santa Maria. (no prelo)
PAAZ, Aneli – Seminários Reflexivos como estratégia de formação continuada de professores. Dep. Educação. – FACCAT-  (no prelo)
PEREIRA, Elisabete M. A – Professor como pesquisador: o enfoque da pesquisa-ação na prática docente. In: Geraldi, C. Ma, Fiorentini, D., Pereira, E. M. (Org.) – Cartografias do Trabalho Docente: professor (a) – pesquisador (a). Campinas, SP: Mercado de Letras - ALB, 1998. 
TAVEIRA, Eleonora B. – A pesquisa do / no cotidiano e suas múltiplas possibilidades de apresentação. Dissertação de Mestrado em Educação – Universidade Federal Fluminense, 1998. 


[1] - A transcrição das falas se apresenta em função dos temas apresentados na pesquisa e não necessariamente em uma ordem cronológica. 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

MAURICE HALBWACHS E A QUESTÃO DA MEMÓRIA


Juliana Pinto Carvalhal

O crescente interesse que a memória vem suscitando hoje entre os historiadores decorre, segundo Patrick Hutton, da inspiração da historiografia francesa, especialmente da história das mentalidades que se propagou nos anos 1970. Para Hutton, a memória já se encontrava implícita naquele momento, principalmente porque os estudos voltados para a área em questão procuravam abordar aspectos da cultura popular, da vida em família, dos hábitos e costumes de uma localidade, da religiosidade, entre outros, que são, sem dúvida, pontos que remetem à constituição social da memória. Patrick Hutton destaca ainda o trabalho de Philippe Ariès, o qual seria um dos primeiros a adentrar no tema da memória, ao reivindicar atenção sobre o papel dos monumentos e comemorações relacionados aos personagens políticos reconhecidos do século XIX, durante a formação dos Estados-Nação (FERREIRA, 2002: pp.141-52).
Em trabalhos mais recentes, a relação entre História e Memória levou vários estudiosos a refletir sobre o conceito de memória, uma vez que o termo passou a ser muito difundido e revalorizado atualmente, mas, em contrapartida, tornou-se alvo de grande descaso ou “fragilidade teórica”. “Em uma palavra, muito se fala e se pratica a ‘memória’ histórica (...), mas pouquíssimo se reflete sobre ela” (SEIXAS, 2004: p.38). Neste esforço de pensar o conceito de memória tornou-se fundamental o retorno às idéias de Maurice Halbwachs que, em 1925, elaborou uma espécie de “sociologia da memória coletiva”. Trabalhos importantes como Les Lieux de Mémoire do historiador Pierre Nora de 1984 e Memória, Esquecimento, Silêncio e Memória e Identidade Social do historiador Michael Pollak (publicados respectivamente em 1989 e 1992) encontram-se em constante diálogo com a obra deste pensador.
E, com a finalidade de perfazer estes caminhos já há algum tempo  sinalizados por tais historiadores, que proponho neste texto algumas breves considerações acerca do pensamento de Halbwachs sobre a memória. A questão central na obra de Maurice Halbwachs consiste na afirmação de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de várias idéias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo grupo. A disposição de Halbwachs acerca da memória individual refere-se à existência de uma “intuição sensível”. Vejamos:
“Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível” (HALBWACHS, 2004: p.41).
Tal sentimento de persuasão é o que garante, de certa forma, a coesão no grupo, esta unidade coletiva, concebida pelo pensador como o espaço de conflitos e influências entre uns e outros (HALBWACHS, 2004: pp.51-2). A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se, portanto, a “um ponto de vista sobre a memória coletiva”. Olhar este, que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios (HALBWACHS, 2004: p.55).
Para além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir desta vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é uma imagem engajada em outras imagens” (HALBWACHS, 2004: pp. 76-78). Ou ainda,
“a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (HALBWACHS, 2004: pp. 75-6).
As lembranças podem ser simuladas quando ao entrar em contato com  as lembranças de outros sobre pontos comuns em nossas vidas acabamos por expandir nossa percepção do passado, contando com informações dadas por outros integrantes do mesmo grupo. Por outro lado, afirma Halbwachs, não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo este processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito (HALBWACHS, 2004: p. 78; 81).
A memória individual não está isolada. Freqüentemente, toma como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apóia a memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica (HALBWACHS, 2004: pp. 57-9). A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica, pessoal.
Também importante neste processo, assinala Halbwachs, são as percepções acrescentadas pela memória histórica:
“os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, que eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo” (HALBWACHS, 2004: p.71).
A memória apóia-se sobre o “passado vivido”, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o “passado apreendido pela história escrita” (HALBWACHS, 2004: p.75). Em Halbwachs, a memória histórica é compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na história de um país. O próprio termo “memória histórica” desta forma, seria uma tentativa de aglutinar questões opostas, mas para entender em que sentido a História se opõe à Memória, para Halbwachs, é preciso que se atenha à concepção de História por ele empregada.
A memória coletiva é pautada na continuidade e deve ser vista sempre no plural (memórias coletivas). Ora, justamente porque a memória de um indivíduo ou de um país estão na base da formulação de uma identidade, que a continuidade é vista como característica marcante. A História, por outro lado, encontra-se pautada na síntese dos grandes acontecimentos da história de uma nação, o que para Halbwachs faz das memórias coletivas apenas detalhes:
“O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo que existiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos os lugares e todos os períodos estão longe de apresentar a mesma importância, uma vez que não foram por eles afetadas da mesma maneira” (HALBWACHS, 2004: pp. 89-90).

A história de uma nação pode ser entendida como a síntese dos fatos mais relevantes a um conjunto de cidadãos, mas encontra-se muito distante das percepções do indivíduo, daí a diferenciação estabelecida por Halbwachs entre Memória e História (HALBWACHS, 2004: p.84).
Ora, a escrita da História passou por significativas mudanças. A crise epistemológica porque passou recentemente a disciplina estremeceu várias das certezas dos historiadores. Passamos a questionar a própria noção de um tempo fixo, para defender a existência de temporalidades múltiplas. Também a questão da objetividade, durante tanto tempo cara ao historiador, vem sendo relativizada, pois assim como o historiador é fruto de seu tempo, também o é o discurso histórico por ele produzido. As fontes escritas também não são menos inverídicas do que as fontes orais, ambas devem ser analisadas criticamente, este sim critério indispensável àqueles que concebem a prática historiográfica como científica.

Mesmo partindo de uma concepção diferenciada acerca da disciplina histórica, Pierre Nora, na tentativa de pensar a ponte entre História e Memória, assim como Halbwachs, as opõe radicalmente. Para Nora, a memória tornou-se objeto da história, sendo por esta filtrada, o que impede o estabelecimento de diferenças entre a memória coletiva e a memória histórica. Mais do que isso, fala-se muito em memória atualmente, mas porque a memória já não existe e tudo aquilo que se considera memória é, para Nora, história. Com isso, restam apenas “lugares de memória” (SEIXAS, 2004: p.40-1). Nora, acaba por retomar parte do pensamento de Halbwachs, acerca das relações entre história e memória:
“a história começa somente do ponto onde acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social. Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixá-la por escrito” (HALBWACHS, 2004: p.85).

A diferença entre o que defende Pierre Nora nos dias de hoje para o que afirmava Halbwachs na década de 1920 é que para Halbwachs as lembranças seriam incorporadas pela história à medida em que fossem deixando de existir ou à medida em que os grupos que as sustentavam deixassem de existir. Nora, por outro lado, entende de forma mais ampla que a categoria memória deixou de existir porque passou a ser reivindicada pelo discurso histórico.  
Já Michael Pollak, não vê com tanto pessimismo as relações entre história e memória ou entre a memória oficial (nacional) e aquilo que denominou “memórias subterrâneas” em referência às camadas populares. Para Pollak, estas memórias marginalizadas abriram novas possibilidades no terreno fértil da História Oral. Não se trata de historicizar memórias que já deixaram de existir, e sim, trazer à superfície memórias “que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” e que “afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados” (POLLAK, 1989: p. 3-15). É por isto, que se pode afirmar, nos dizeres de Henry Rousso que a “história da memória tem sido quase sempre uma história das feridas abertas pela memória” (ROUSSO, 2002: p. 95).
Mais do que isso, o que a emergência destas memórias vêm ocasionando, conforme aponta Pollak, é a disputa entre memórias ou a luta  entre a memória oficial e as memórias subterrâneas. Este embate que se trava pela incorporação destas memórias marginalizadas, silenciadas, é um embate pela afirmação, sobretudo, de uma identidade que, por pertencer a uma minoria, encontra-se marginalizada (POLLAK, 1989: pp. 3-15).
A escrita da história como concebida nestes tempos idos do estudioso da sociologia da memória transformou-se profundamente até os dias atuais. E se, a memória retornou ao meio acadêmico com tamanha força, isto, sem dúvida, decorre das questões que o tempo presente vem colocando ao historiador e à sociedade atual.
O processo de globalização recorrente, por exemplo, é parte indissociável do que agora molda o homem que procura compreender seu tempo, seu passado. Também aí se insere a luta empreendida pelos diversos movimentos sociais no intuito de alargar o conceito de cidadania no interior da sociedade e nas relações de poder que permeiam a atividade humana. Ambos os processos reclamam a questão da identidade, seja ela de minorias, seja do ponto de vista da nação. Daí o discurso de “memória” alcançar tamanho significado nos dias de hoje.

Referências:

FERREIRA, Marieta de Moraes. Historia oral: una brújula para los desafios de la história. Historia, Antropologia y Fuentes Orales: escenarios migratorios. Barcelona, nº28, p.141-152, 2002. Disponível site: CPDOC. Acesso em 26 de agosto de 2005.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, nº 3, 1989.

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. RJ: FGV, 2002, p. 95.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de Memórias em Terras de História: Problemáticas Atuais. IN: BRESCINI, Stella; NAXARA, Marcia (orgs.). Memoria e (Res) Sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004.

JULIANA PINTO CARVALHAL é Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico, nº56. 

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O SENTIDO DA ALFABETIZAÇÃO TECNOLÓGICO

Francisco Alves da Costa Sobrinho

As Tecnologias da Informação aplicadas na comunicação buscam atender as atuais demandas, e exigências, de um público cada vez mais numeroso, ávido para ter acesso, domínio e controle dessas tecnologias informáticas, diante da necessidade de processar as informações e utilizá-las em seu beneficio.

Em “El sentido de la AlfabetizaciónTecnológica”, de Hugo M. Castellano (Revista ConTexto Educativo, nº. 11, Setembro de 2000), há um trecho que diz: “los que egresen em el sistema educativo de hoy sin la preparación adecuada, seram analfabetos tecnológicos em el mundo del futuro”, entendendo-se que esta assertiva nos põe de frente com o sentido oculto que ela carrega, ao substituir analfabetos por indigentes, dando a entender que “os pobres do futuro o serão de conhecimento tecnológico e não de dinheiro, nem de bens, nem de cultura, senão daquilo que terá de lhes permitir – ou não - aceder a todas essas coisas.”

Daí percebe-se que há uma grande responsabilidade posta aos professores e educadores de todos os matizes, “que os assinala como diretos responsáveis por todos os males futuros, se não cumprem com seu dever.” (Castellano, 2000). E o futuro, para além de esboçado, é hoje, agora, ocorre no presente. Não há mais tempo para justificativa axiomática, nem repetições de tentativas frustradoras - que se caracterizaram com o uso da tecnologia neoliberal, formada em oficinas e seminários de ‘marketing educativo’, ‘gerenciamento empresarial e qualidade total’, ou ‘management escolar’, retratando o equivocado panorama do nosso tempo.

Assim entendido, a alfabetização tecnológica adquire sentido de necessidade absoluta, a reclamar soluções que ataquem os efeitos e contribuam para eliminar as causas, servindo para dirimir a injustiça, criar uma ordem social mais benévola e garantir a igualdade de oportunidades para todos.

Deverá servir para educar, para enaltecer e enobrecer ao Homem, ou seja, entendendo de uma vez por todas que, em rigor, o ato de educar tecnologicamente para sobreviver em um mundo tecnologicamente feroz e fomentador de desigualdades, de modo que uns poucos possam ser beneficiados e dados por satisfeitos enquanto o resto agoniza, não é desculpa nem justificativa para educar. E, com esse entendimento, dar sentido libertador e humano à educação tecnológica.